A série The Boys, conhecida por sua crítica feroz ao idealizado mundo dos super-heróis, vai além da ação visceral e do humor negro. A obra enquanto uma arte – pois expressa o potencial das artes cênicas na cultura pop- mergulha fundo em questões de poder, moralidade, trauma e destruição emocional, oferecendo uma vasta gama de personagens complexos cujas motivações e comportamentos podem ser analisados sob a lente da psicanálise, a teoria psicológica proposta por Sigmund Freud. Freud argumentava que muitos dos nossos comportamentos são moldados por forças inconscientes, desejos reprimidos e conflitos internos. Em The Boys, esses temas aparecem em cada um dos personagens, que carregam consigo traumas e conflitos psíquicos que guiam suas ações e escolhas.
Analisando os personagens de The Boys pela Psicanálise
Capitão Pátria: Narcisismo, Complexo de Édipo e Megalomania
Homelander ou Capitão Pátria, o líder dos Sete, é um dos personagens mais complexos e perturbadores da série The Boys e fornece bastante material para estudo da Psicanálise. Ele representa uma combinação extrema de narcisismo, megalomania e uma profunda necessidade de validação. No centro de seu comportamento está a busca incessante por adoração, que Freud descrevia como típico do narcisismo patológico. Homelander é incapaz de formar conexões genuínas com os outros, o que reflete a falta de desenvolvimento emocional e a ausência de uma figura de apego na infância. Isso o leva a desenvolver uma necessidade compulsiva de ser amado e temido ao mesmo tempo, refletindo sua insegurança interior.
A relação de Homelander com Madelyn Stillwell é um exemplo claro do Complexo de Édipo freudiano. Ele busca nela uma figura materna, misturando desejo sexual e dependência emocional, o que revela um profundo desejo reprimido de retornar ao estado de cuidado materno. Quando esse vínculo é quebrado, sua instabilidade emocional se intensifica, levando-o a comportamentos cada vez mais destrutivos e impulsivos.
Billy Butcher: Vingança, Repressão e o Id Descontrolado
Billy Butcher, líder da resistência contra os super-heróis, é impulsionado por uma intensa sede de vingança. Sua obsessão em destruir Homelander, e os “supers” em geral, é resultado de traumas profundamente reprimidos. Freud descrevia a repressão como o mecanismo pelo qual o inconsciente empurra memórias ou desejos dolorosos para fora da consciência. Butcher é incapaz de processar a perda de sua esposa de forma saudável, e essa dor reprimida se manifesta em uma fúria cega e destrutiva.
Seu comportamento pode ser entendido como uma expressão do id, a parte da psique que busca satisfação imediata dos impulsos primitivos, como agressão e desejo. A incapacidade de Butcher de equilibrar sua raiva com a razão faz dele um personagem trágico, que se afunda cada vez mais em seu próprio ódio. Sua busca incessante por vingança o impede de encontrar qualquer tipo de paz ou cura emocional.
Starlight: Conflito entre Id, Ego e Superego
Starlight (Luz-Estrela), uma heroína que entra nos Sete com o sonho de mudar o mundo, representa o conflito clássico entre as três estruturas da mente freudiana: id, ego e superego. O id de Starlight é simbolizado por seu desejo de se afirmar como uma heroína poderosa e reconhecida, enquanto o superego representa sua bússola moral, guiada pelos valores de justiça e compaixão que ela aprendeu na infância. O ego, a parte racional da mente, tenta equilibrar esses dois impulsos enquanto Starlight navega pelo ambiente corrupto e moralmente comprometido da Vought.
Sua constante luta para manter sua integridade enquanto lida com as pressões e manipulações da corporação é uma manifestação clara desse conflito psíquico. Ao longo da série, ela luta para preservar sua identidade e valores em um mundo que tenta constantemente corrompê-la.
Hughie Campbell: Trauma e o Medo da Impotência na Psicanálise desse Personagem de The Boys
Hughie Campbell é o personagem que talvez melhor personifique o homem comum lançado em circunstâncias extraordinárias. No início da série, ele é traumatizado pela morte brutal de sua namorada, Robin, pelas mãos de A-Train. Esse evento é o gatilho que o empurra para o mundo da resistência contra os super-heróis. O trauma de Hughie é um exemplo claro do que Freud chamava de neurose traumática, em que a vítima de um evento perturbador é incapaz de processar adequadamente o ocorrido, levando a uma série de sintomas como ansiedade, medo e impotência.
Freud também falava sobre a “ansiedade de castração”, que pode ser entendida como o medo de perder o controle ou o poder. Hughie, em diversas ocasiões, demonstra esse medo de impotência, tanto emocional quanto física, especialmente em sua relação com Starlight. Ele constantemente se sente inseguro e inadequado, o que o leva a buscar validação externa e a tentar se provar a qualquer custo, mesmo que isso o coloque em situações perigosas.
A-Train: Culpa e o Superego Desajustado
A-Train, o velocista dos Sete, é um personagem que luta com sua própria culpa e sentimentos de inadequação. Embora ele seja um super-herói aclamado, sua busca por se manter no topo o leva a tomar decisões destrutivas, como o uso de compostos perigosos para aumentar sua performance. A-Train tenta constantemente reprimir sua culpa pela morte de Robin e outras ações moralmente questionáveis, mas, à medida que a série avança, essa culpa começa a emergir, levando-o a comportamentos cada vez mais erráticos.
Freud descrevia o superego como a parte da psique que lida com a moralidade e a culpa. Em A-Train, o superego está desajustado, sendo dominado por seu desejo de sucesso e poder, em vez de valores éticos. Sua repressão emocional eventualmente o empurra para um colapso, demonstrando como o conflito não resolvido entre o id e o superego pode resultar em autodestruição.
Queen Maeve: Resignação, Desgaste Emocional e Repressão
Queen Maeve, uma das heroínas mais poderosas dos Sete, sofre de um desgaste emocional profundo. Ela está presa em um ciclo de repressão de seus valores morais e desejos pessoais em troca de um status de heroína que ela já não acredita. A psicanálise vê a repressão como um mecanismo de defesa em que os desejos ou sentimentos inaceitáveis são empurrados para o inconsciente. Maeve reprime seu desejo de justiça, suas emoções vulneráveis e sua própria identidade sexual para se conformar com as expectativas da Vought.
Esse desgaste emocional a transforma em uma figura apática e resignada, mas ao longo da série, sua repressão começa a ceder, e Maeve se vê obrigada a confrontar seus próprios demônios. A luta entre sua conformidade com o sistema e seu desejo de rebelar-se contra ele é um claro exemplo de como a repressão prolongada pode levar ao colapso emocional.
Black Noir: Silêncio, Repressão, Trauma e o Inconsciente
Black Noir é, sem dúvida, um dos personagens mais enigmáticos da série The Boys e um dos mais expressivos quando o assunto é trauma, sob o prisma da psicanálise. Seu silêncio quase absoluto e sua falta de expressão emocional podem ser interpretados como uma repressão extrema dos impulsos e desejos inconscientes. Na psicanálise freudiana, o inconsciente é a parte da mente que armazena desejos reprimidos, traumas e medos. A ausência de fala de Black Noir pode ser vista como um símbolo dessa repressão, onde ele mantém todos os seus impulsos escondidos sob uma máscara de controle rígido.
Seu comportamento muitas vezes desumanizado sugere que ele é alguém que reprimiu tanto seus sentimentos e desejos que se tornou praticamente uma máquina. A falta de expressão emocional de Black Noir pode ser interpretada como um resultado de anos de repressão, criando uma personalidade que, na superfície, parece inabalável, mas que está, possivelmente, à beira de um colapso emocional silencioso.
Embora a causa da perda de sua fala tenha sido a agressão sofrida pelo Soldier Boy, é sabido que Black Noir tem traumas das agressões sofridas e que processa tais traumas fantasiando através de animais fictícios e em forma de desenho animado.
Conclusão
A psicanálise permite explorar a complexidade emocional e psicológica dos personagens de The Boys de uma forma profunda e envolvente. Cada personagem é moldado por seus traumas, desejos reprimidos e conflitos internos, o que os torna figuras tridimensionais em um mundo onde o poder corrompe e a moralidade é fluida. A série não apenas subverte o conceito de super-heróis, mas também oferece uma rica oportunidade para entender como os aspectos inconscientes da psique humana influenciam nossas ações e escolhas.
Observação: Embora essa seja uma interpretação possível e ofereça uma visão interessante sobre as camadas psicológicas dos personagens de The Boys, não deve ser levada ao pé da letra. O objetivo da série é, acima de tudo, o entretenimento. Como uma obra de ficção, os personagens são criações que servem ao propósito da narrativa. Apenas personagens centrais, como Billy Butcher, Homelander e Madelyn Stillwell, podem ser considerados manifestações mais claras da intenção dos autores, refletindo arquétipos psicanalíticos. As demais análises são interpretações criativas baseadas em temas da psicanálise, mas não representam necessariamente as intenções dos criadores da série.
Evandro José Braga é historiador, pedagogo, mestre em Ensino de História e psicanalista clínico winnicottiano. Com vasta experiência em docência desde 2013, é autor do livro “Leitura de Angola Janga no ensino de História”. Formado pelo Instituto Haus Bergasse, atua em sessões presenciais e online, unindo sua paixão pela educação e pelo desenvolvimento humano. Santista de coração, é um eterno torcedor do “Peixão”, onde busca inspiração para cada desafio da vida.