Este texto irá analisar a Psicanálise em Laranja Mecânica (1971).
Este polêmico filme lançado no início dos anos 1970 é considerado uma obra prima de Stanley Kubrick, apresentarei neste texto como a obra faz referência é uma obra freudiana.

“Laranja Mecânica”, a obra-prima de Stanley Kubrick, é um filme polêmico dos anos 70 que chocou o mundo com sua violência e linguagem deliberadamente crua para a época. O que pouca gente percebe é o pano de fundo que Laranja Mecânica empresta da Psicanálise ao abordar a impulsividade e os instintos primitivos da psique humana.

 Neste texto, examinaremos como a obra se relaciona com conceitos freudianos, especialmente em relação ao maravilhoso livro de Freud de 1936, Mal-estar na civilização, onde aponta que quanto “mais civilizados” mais recalcamos nossas pulsões, ou seja, podemos ler o experimento feito no protagonista como uma imposição da civilização, aqueles “não civilizados”.

A Simbologia das Pulsões

O filme começa com os “drungs”, gangue liderada pelo protagonista Alex, bebendo leite em um ambiente repleto de estátuas femininas nuas. O leite simboliza a fase oral do desenvolvimento psicossexual, onde o “Id” predomina. Os drungs, ao viver como se fossem “Id puro”, manifestam desejos sexuais e violentos sem a mediação do “superego”, refletindo uma simbologia de regressão à infância, sem deslocar desejos sexuais e violentos, deixando suas pulsões de vida e morte pulsar sem interferência do superego. Id, Ego e Superego são conceitos presentes na psicanálise e primeiro relatados na primeira e segunda Tópica de Freud, ao descrever o aparelho psíquico.

Objetos Fálicos e Poder

Os objetos fálicos presentes no filme, como a máscara de pênis de Alex e sua vestimenta exagerada, simbolizam a relação do protagonista com a sexualidade e o poder. Esses símbolos não apenas sublinham a sexualidade pervertida dos drungs, mas também questionam a masculinidade em uma sociedade que idealiza a força bruta. 

A presença de objetos fálicos como a bengala bastão, a calça com preenchimento, a serpente de Alex e o pirulito das moças provoca uma reflexão sobre como a cultura constrói a identidade masculina e suas implicações, além de simbolizar uma postura narcísica motivada por um Id desenfreado. Tal falocentrismo é também observado em outros personagens mais atuais, como o Homelander de The Boys, principalmente nas cenas que envolvem masturbação e seu desejo sexual desenfreado.

Ao analisar a Psicanálise em Laranja Mecânica é impossível ignorar o falocentrismo, o narcisismo envolvido e o quanto a autogratificação tece uma relação entre a forma com a qual as pulsões e o desejo do protagonista são voltados para si mesmo.  Tal processo pode ser descrito em termos técnicos como autocatexia.

A Dinâmica Familiar e a Castração

A dinâmica familiar é crucial para a compreensão da simbologia em “Laranja Mecânica”. Os pais de Alex são retratados como fracos e castrados, incapazes de exercer autoridade. 

Essa fraqueza contribui para a formação do “Id” incontrolável de Alex, gerando uma fantasia de liderança e manipulação, onde há uma fantasia narcísica infantil e um ego que não consegue se desenvolver.Seus pais não conseguem barrar Alex, quando ele sai da prisão os pais o renegam pois já tinham alugado o quarto para um inquilino. Ao final, os pais voltam e assume a culpa pela derrocada do herói; nesse momento, se cria um vínculo logo em seguida com a psiquiatra que lhe parece sua mãe e que chama a atenção de Alex. 

Essa entrada tardia no complexo de Édipo lhe cura  da cura imposta, pois ele volta a fantasiar sexo e violência na fala com a terapeuta, em uma transferência edípica.

A Violência como Reflexo da Natureza Humana

O filme apresenta a intersecção entre as pulsões de vida e morte. Cenas que contrastam a beleza do sexo com a brutalidade do estupro revelam a complexidade da natureza humana. Freud, em “Além do Princípio do Prazer” (1920), argumenta que não pode haver pulsão de vida sem pulsão de morte. A simbologia aqui é poderosa: a beleza da arte e da sexualidade contrasta com a brutalidade da agressão, convidando o espectador a refletir sobre os limites da moralidade.

Lacan abordou o crime em relação à estrutura do desejo e à falta. Ele sugere que o ato criminoso pode ser visto como uma resposta a uma falha no laço social e um desvio do desejo normativo.

 No contexto do estupro e da violência misógina, sua teoria pode ser utilizada para interpretar esses atos como expressões de um desejo de dominação e controle, revelando uma relação distorcida com a feminilidade e a sexualidade. 

Essa perspectiva permite delves nas dinâmicas de poder e na construção do sujeito em um contexto sociocultural que perpetua a misoginia, ressaltando a importância de entender a violência não apenas como um ato físico, mas também como uma manifestação de estruturas psíquicas e sociais mais amplas.

Homens que formam laços apenas entre si, como os personagens de “Laranja Mecânica”, frequentemente operam em um sistema que exclui e desumaniza as mulheres, reafirmando a dominação masculina.

 Essa dinâmica pode manifestar-se em comportamentos violentos ou de objetificação em relação às mulheres, revelando uma busca por validação e identidade masculina que se baseia na negação do feminino. Assim, a homoafetividade exclusiva (não confundir com homossexualidade), quando entendida dentro desse contexto, pode se tornar uma extensão da misoginia, onde os laços entre homens são construídos em oposição à figura feminina, perpetuando padrões de violência e desrespeito.

Do ponto de vista da psicanálise, a projeção e a repressão dos aspectos femininos do eu podem levar a uma negação e desvalorização do feminino enquanto homens tentam reafirmar sua identidade ao desumanizar as mulheres, vistas aqui como objetos de prazer.

A Simbologia do Fascismo

A obra de Kubrick também pode ser lida como uma crítica à simbologia do fascismo. A representação do controle social e da brutalidade estatal reflete uma preocupação com regimes totalitários, e a padronização de uniformes, o uso de simbolos militares e de linguagem fálica demonstra um desejo de exercer dominância e totalitarismo.

No livro “LTI: A Linguagem do Terceiro Reich”, Victor Klemperer analisa como a linguagem e a propaganda foram usadas para desumanizar o indivíduo e consolidar o poder, através da mudança da linguagem, da interpretação de sintaxes e da semiótica. Essa desumanização naturalizada se assemelha à transformação de Alex, que, ao ser submetido a condicionamentos aversivos e cada vez mais normalizados dentre de seu grupo, perde sua identidade e se torna uma marionete da sociedade.

Lacan e o Desejo

Jacques Lacan, ao discutir a relação entre o desejo e o sujeito, argumenta que a identidade é formada em torno da falta e do desejo. A subserviência de Alex ao sistema, uma vez que ele é condicionado a rejeitar suas pulsões, reflete a ideia lacaniana de que o desejo é mediado pela lei e pelo outro. O fascismo, nesse contexto, atua como um “grande Outro” que molda e controla os desejos individuais, forçando o sujeito a se conformar às normas sociais.

A Psique de Alex

No contexto do filme, o personagem Alex é um retrato intrigante da psicologia humana. Sem um ego devidamente constituído, ele apresenta um id incontrolável, reminiscentemente infantil, que se traduz em uma fantasia de liderança e manipulação através da força e da sedução. Essa dinâmica é comparável à ilusão de um bebê que acredita ser o responsável pela criação do seio, enquanto, na verdade, é manipulado por figuras políticas que o usam como instrumento para propaganda e crítica ao governo.

A obra cinematográfica nos apresenta cenas impactantes que exploram as pulsões de vida e de morte. Quando essas pulsões se manifestam de maneira isolada, os resultados são chocantes. O sexo, por exemplo, é retratado de forma bela, enquanto o estupro se revela alarmante. Da mesma forma, as artes marciais são apresentadas com uma estética envolvente, enquanto as agressões covardes geram um forte repúdio. Assim, o filme, em paralelo com a psicanálise, nos ensina que aquilo que nos torna monstruosos também nos humaniza. Não existe pulsão de vida sem pulsão de morte, uma ideia central que Freud explorou em seu texto “Além do Princípio do Prazer” (1919), especialmente no contexto do pós-Primeira Guerra Mundial.

A metáfora central que emerge é a de que, assim como Alex se vê privado de sua capacidade de pulsar—de agredir e estuprar—ele também perde a conexão com sua música favorita, a Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven. Essa privação simboliza uma perda maior: ao deixar de pulsar, Alex deixa de ser humano, pois até mesmo a música, uma expressão tão fundamental da experiência humana, perde seu significado. A complexidade dessa narrativa nos leva a refletir sobre as nuances da natureza humana, onde a linha entre o que é belo e o que é chocante se torna cada vez mais tênue.

Conclusão

“Laranja Mecânica” não é apenas uma exploração da violência e da alienação, mas uma reflexão profunda sobre a condição humana, onde a simbologia emprestada da Psicanálise se torna uma ferramenta essencial para compreender os conflitos internos e sociais que nos definem. 

A obra nos confronta com a pergunta: até que ponto estamos dispostos a sacrificar nossa essência em nome da civilização? Como controlar nossas pulsões sem sofrer com o recalcamento e suas inúmeras vertentes de neurose?

Essa foi a análise de Laranja Mecânica sob a ótica de Freud e da Psicanálise, espero que tenham gostado e até a próxima!